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  • Flávia Costa

O homem e el niño

A morte é assustadora por que nos leva ao desconhecido. Geralmente a morte é tão rápida que não nos dá tempo de saber como ou de onde veio. E tudo que é inesperado tende a parecer maior do que é. É por isso que as plantas têm uma grande vantagem sobre os animais. Sua vida é toda pontilhada de morte – uma morte aos pedacinhos, que as prepara para a grande morte. As folhas secam e se vão, as flores murcham e se vão, um galho que cai, outro galho, enfim, toda a planta se seca e morre quase sem saber o que se passou. Como fosse mateiro, Aroeira (de quem nunca se soube o verdadeiro nome, pois todos sempre o chamaram assim) conhecia bem o destino das árvores e demais plantas. Na floresta a morte é coisa corriqueira demais para ser notícia.


Naquele ano anunciava-se a maior seca dos últimos 15 anos. Em uma região onde só há duas estações no ano, as chuvas são tempo de reprodução e a seca é o tempo de morte. Não que o Aroeira fosse velho, afinal 50 anos podiam bem ser a metade da vida. Mas os amigos notavam que o rosto queimado denunciava bem mais. Quando chegou o verão, suas rugas só fizeram aumentar. Nas grandes clareiras abertas pela queda dos angelins, o sol era ainda mais inclemente. Havia mais de dois meses sem chuva e as pobres plantas jovens nas clareiras secavam até a alma, dando adeus ao Aroreira e diminuindo seu trabalho. Foi por essa época que ganhou mais rugas nas mãos e também nos braços. Começou por sentir certa dificuldade com as juntas das pernas. Ao abaixar-se para medir as plantinhas, seus joelhos estalavam como galhos ao serem pisados.


A cachaça sempre melhorava tudo e até a chuva caía por trás da névoa turva. A névoa fez-se permanente, mas não era prenúncio de chuva. Só muito mais tarde percebeu que a névoa estava em si, e não no céu, e então soube que nunca mais choveria. Passou a visitar as clareiras para dar adeus às companheiras, e regularmente dava adeus a um pouco de si mesmo. Não podia precisar quando se apagou a distinção entre noite e dia, mas foi assim que o tempo deixou de ter fim.



Uma noite choveu de verdade. Aroeira se largou para a floresta e meteu os pés na água que subiu até clarear-lhe os olhos. Desentortou, esticou os braços, ergueu a cabeça, revigorou. Diz-se mesmo que aroeira é árvore de fortaleza – seca, mas não racha. Quando o sol esquentou no meio-dia seguinte, a clareira ficou que era só vapor. Não durou muito. Depois de secar tudo o que sobrava, o sol passou a exigir também o que faria falta. O vapor agora não vinha mais do chão. Aroeira sentiu o suprimento cada vez mais escasso, era já preciso dar de si para alimentar a pressão incessante. Paralisou, e a névoa voltou a enganar-lhe. Tentou encontrar o motivo, mas as idéias também evaporavam. Somente a vaga sensação de estar vivo no mesmo lugar. Mesmo sem a cachaça, a clareira girava e podia ver em todos os ângulos as companheiras. As gigantes e imponentes, as mais jovens e inseguras, os arbustos, as ervinhas, em toda sorte de tons de verde. Um caleidoscópio brilhante de luz e folhas, talvez uma nuvem, céu azul, dossel pesado. Chão. Formigas de fogo, em grande exército, sobre todo o corpo. E em breve, seria nitrogênio e fósforo para as raízes.


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